13 de dez. de 2010

"QUAL É O CAMINHO MAIS LONGO?"


Por Mister Formula Finesse

O Tempra Turbo é uma das mais perfeitas crias do "desbunde" tecnológico que a indústria automobilística nacional experimentou nos anos noventa, consequência direta da abertura do mercado para os tão sonhados carros importados. Vamos revisitar brevemente um carro que fez história em sua época, a aposta da Fiat no segmento do "esporte fino"...



O Tempra, desde a sua gênese, sempre foi um carro que surpreendeu. Seu ótimo espaço interno em um carro não tão grande - quase que feudo da Fiat essas características - o esmero nas suas linhas estudadas para obter o máximo em aerodinâmica funcional e o inédito padrão de conforto na marca. Uma profusão de tecidos macios, que o faziam parecer com a linha mais alta da marca Chevrolet, acabamento imitando nogueira no centro do painel, e uma marcha lenta que não passava dos 600 giros, denotavam todo um ambiente sereno e tranquilo. Uma perfeita cápsula para isolar os ocupantes das agruras do mundo exterior.

No entanto, os 99 cavalos declarados extraídos do bloco carburado de duplo comando (valores amarrados pela política fiscal da época) não faziam do pesado Tempra um carro lesto. Na verdade, suas retomadas e arrancadas eram alguns pontos abaixo do esperado, algo que previa grandes dificuldades contra seus concorrentes de 1991/1992: o "GTI quatro portas" Santana top e o Monza Classic M.P.F.I.

Em pistas curtas como a da QR, o carro era uma carroça com reumatismo, e sua verdadeira vocação para velocidade exigia muito espaço a frente. Velocidade!!! Sim, essa era a salvação performática em que o carro se agarrava como em uma tábua de náufrago. Nas verdadeiras distâncias, o carro começava a crescer no velocímetro e no espelho dos outros carros; ainda me lembro do espanto ao tocar os 180 indicados, mas com uma serenidade e silêncio até então inédita...todo o conjunto sussurrando em suave conversa com o vento e o asfalto, sem sobressaltos ou histerias.

Velocidades indicadas como 200 ou 205, em estrada totalmente plana, fechavam com os números reais de revistas como Autoesporte, que extraíam 187 km/h reais do carro, naturalmente que os duzentos ou mais indicados eram debitados no providencial erro do indicador de velocidade.

Ou seja, você poderia até levar uma surra de juntar criança se fosse tolo de alinhar com um best seller esportivo como  o Gol GTi, mas em uma pista de testes como a da Volks na Alemanha (ou qualquer looonga reta!), pode ter certeza que nesse hipotético racha, lá pelo km 5, o pacato Tempra assumiria a ponta e de lá não sairia mais...cortar o vento era o negócio! Mas ainda assim, o carro ficou com fama de lento pelas peculiaridades do trânsito no Brasil - arrancadas fortes em cidade e velocidades muito baixas nas rodovias controladas - e mesmo que (com muita boa vontade), o carro ficasse a 3 metros de tomar a ponta em disputas de arrancada com seu primo mais velho e esportivo Uno 1.6R a gasolina, a pecha de sedan sem vivacidade já estava tristemente consolidada.

Pausa para Tertúlia do nhô Finesse: "Muitos anos atrás, ainda bastante jovem, estava eu brincando com um Tempra Ouro quando aparece pelo espelho  - comendo o asfalto - um Santana GLSI da última safra da VW (1993), pára choques pintados e toda aquela fleuma esportiva que só o sedan da Volks dispunha. Evidentemente que caí na armadilha fácil da disputa em estrada, mas na terceira curva sem compensação que entrei como vinha, minha confiança no carro quase que se extinguiu totalmente pois a traseira se mexeu de um modo muito intimidador. A combinação do jovem inapto e mais a tendência do carro em mostrar certa vivacidade no eixo traseiro, foram a definitiva senha para abrir espaço para o mais estável - e bem conduzido – Santana".

O pequeno comentário acima é apenas par mensurar umas das peculiaridades muito comentada do carro da época, um certo balanço na traseira do carro em curvas mais afoitas ou tomadas com a "mão pesada". 

Bem, o tempo passou e a Fiat se convenceu da necessidade de energizar a pesada carroceria do carro com algo mais eficiente. O primeiro dezesseis válvulas nacional foi um passo importante para toda a indústria no tocante a adotar a nova tecnologia. Seus 127 cavalos alegados - 134, 135 reais - levavam o emblema da Fiat a cerca de 202 km/h de final. Era um avanço realmente importante, o carro se tornou o terror dos pocket rocket da época. Sua caixa de direção rápida, freios a disco, e o motor que girava com decisão o tornaram uma arma letal diante da concorrência. Não era algo no nível da excelência do Omega, mas era todo um pacote mais enxuto, nervoso e exigente em termos de trabalho ao volante. Não era forte em rotações baixas ou médias, mas jogando a agulha do conta-giros para o alto, o caráter fortemente vincado em esportividade começava a exigir sua franquia nas estradas. Apenas sua caixa um pouco esponjosa não fazia jus à franqueza mecânica do conjunto. Era um quatro-portas de respeito, ao menos em termos nacionais.



Mas... a Fiat não parecia satisfeita, suas experiências com turbocompressores - novo pioneirismo nacional - estavam dando forma ao Uno Turbo, um pequeno petardo suficientemente bom para murchar flores à sua passagem.



A cartada era ousada, transformar o antes sisudo Tempra em uma máquina sanguínea e de forte apelo aos adoradores do cavalo-vapor. A primazia da carroceria duas portas - fato inédito na linha mundial Tempra - uniu-se ao motor de oito válvulas animado por um turbocompressor Garrett que operava a conservadores 0,8 bar. Ou seja, em motorização e aparência, configuração e utilização, o Tempra era único em suas características, ousadia que nem a nível mundial a fabricante italiana teve com esse modelo.

Dava para imaginar uma Ferrari 456GT dos pobres, um duas portas realmente quente, quatro lugares (bem instalados) e luxo e acabamento de primeira. No lançamento, era oferecido um curso de pilotagem em Interlagos, para aprender a dominar a fera. Falem amigos, não parecia a melhor diversão possível sem precisar tirar as calças?



Parecia mesmo, na época, dava até para melindrar os jogadores de futebol mais famosos (o indefectível Eclipse GT) e dar alguns sustos nas 325 manuais...

Mas vejamos o que o carro tinha de bom e de não tão elogiável, por partes:

Parte um e única: condução!!! Ou pensam que vou avaliar se o couro era bem costurado no pomo da alavanca? Bem; o Tempra Turbo era algo que fugia bastante do padrão da época.

Progressividade era a sua filosofia. As arrancadas não eram fulminantes desde a primeira marcha, ele não largava doses maciças de borracha pelo asfalto, pelo contrário. Vi um “vida loka” há muitos anos atrás tentando um burnout com seu Turbo quase zero. A fumaça que saiu, foi da embreagem hidráulica (a mesma do Alfa 164)...

O Tempra não arrancava com galhardia, mas logo na metade em diante da primeira marcha, aquela massa toda começava a tentar rearrumar as suas vértebras, eu disse tentava, pois a pegada era forte, mas progressiva. As marchas se sucediam rapidamente, pois a caixa colaborava e era mais franca e “metálica” que a dos 16V. Manter o pé no fundo do acelerador nas trocas era algo um tanto brutal com o carro, que começava a assoprar e cuspir pela descarga em protesto. Não havia o assovio do turbo, mas um som diferente de aspiração, como se quisesse sugar toda a atmosfera a frente. Não era algo muito bonito de ouvir, assopre com força o ar entre os lábios não para fazer música, mas para forçar o ar e terá uma ideia da plena aceleração vocal do carro.

A velocidade crescia e era divertido ver o manômetro do turbo sempre histérico tocando no 0.8 bar (seu limite), o motor enchia rápido e em curtas distâncias, tudo de certo modo filtrado pela cabine e pela suspensão. Não era como um desses Gols turbinados de hoje que emborracham em terceira marcha e explodem logo depois, era algo com pedigree, visando dobrar os limites legais com elegância e finesse...



Mas, em condução citadina, parecia um Titanic propelido a motor de popa. Com o ar condicionado ligado, e com topografia acidentada, até um carroceiro iria te dar sinal de luz. Quando cruzava a fronteira dos 3000 giros, onde o turbo começava a “pegar na veia”, a via acabava, um farol aparecia, uma lombada... um guarda!  Dizem que a Fiat não adotou o motor de dezesseis válvulas como base para o Turbo com medo que o carro ficasse muito violento. Concordo, mas não em relação a esperada energia a mais no topo, mas sim no dia a dia. O carro simplesmente ficaria inguiável, pois teria um pulmão tão sadio como um doente de enfisema; ao menos sendo dirigido sem vigor.

O sedan veloce – apesar de duas portas – era um deleite no seu habitat natural, a estrada. Deixar cair o giro e voltar a acelerar em quinta, só de olho nas informações do painel (manômetro principalmente), era uma experiência que te fazia gostar ainda mais do carro. Ele empurrava macio e suave, não exigindo muita estrada para passar fugazmente dos 200, com a naturalidade que um popular passa dos 120. Sua máxima – 220 oficiais e reais – eram conseguidas na base dos 240 indicados como limite do velocímetro. Nos testes das revistas, o carro dava de final 213 a 217 reais. Com filtro esportivo e ausência de catalisador, acredito que chegava nos valores descritos pela marca. Em descida, a máxima vinha aproveitando espaços relativamente curtos. Talvez fosse uns 500 metros mais eficiente que um Omega CD para alcançar o seu zênite...

O grande Bob Sharp – autoentusiastas.blogspot.com (oráculo, oráculo...) - fez um memorável comparativo com o Omega Diamond 3.0, e comentou que a caixa do Fiat estava um pouco curta e não colaborava com o potencial total do motor. Tanto que no comparativo, o grande Chevrolet franqueou para si a maior máxima do dia (220 km/h reais).

As rodas de 14 polegadas (!!!!!), pareciam meros enfeites naquela massa suspensa toda. Mas eram mais largas e mais bem usinadas. Hoje, quando vemos Sonata com rodas 18, e a maioria dos carros “normais” com dezesseis, podemos considerar erroneamente que o Tempra não estava bem calçado. (as maiores rodas da época eram as de quinze da linha Omega).

Mas ele curvava bem, não destracionava com facilidade nas tomadas, até porque rolava pouco entre os eixos. Só em pisos de pouco atrito ou com muito otimismo nas saídas de curvas ele fazia algum escândalo. Em pistas molhadas, largas e conhecidas - com bastante intimidade - dava para forçar a frente até ela sair de prumo, ao aliviar o acelerador, a traseira do carro começava a descrever um arco maior e mais suave, mas de controle muito fácil e intuitivo. Era um jogo de equilíbrios mais forte no visual do que na perícia requerida, nada de atirar de lado, mas de provocar com sutileza a fera... 

No seco, era sólido e uno, e a despeito das “rodas pequenas”, era bastante confiável para dar respaldo ao motor. A direção de boa pega e pouco mais de 3 voltas de batente a batente, era pesadinha mesmo em manobras, meio que entregando que a personalidade do carro era correr. A caixa tinha um “Cléo-cléq” viril, metal com metal mesmo, lembrava de leve outro grande cupê quente do passado, o Opala 250-S.

Um problema muito sério do carro eram os seus bancos em couro. Praticamente sem apoio lateral, naturalmente escorregadios, não seguravam o condutor como precisava. Eram duros e sua relação com pedais e volante eram um tanto conflitantes. Aquela coisa meio Alfa e Ferrari 308 de braços longos e pernas curtas. Era deveras complicado encontrar a melhor posição ao volante; curiosamente, no Tempra Stile que surgiu depois, os bancos de couro tinham mais apoio e os de tecido abraçavam muito melhor o motorista. Pode parecer uma tolice, mas bancos adequados são extremamente desejáveis para te conectar com o carro. Se entrar em uma curva um pouco mais quente, a última coisa que vai querer saber é como segurar o traseiro no banco, tornando todo o movimento do corpo anti-natural, forçando e não assimilando uma interação melhor com o carro.

Painel envolvente, computador de bordo, disqueteira no porta malas, visual matador em vermelho, dois litros turbocomprimido; enfim!... O Tempra Turbo era um bicho audacioso e que por um breve tempo ostentou a aura mítica dos chamados “carros definitivos”. Provocava muita curiosidade nas agências, virava o pescoço de jovens de 8 a 80 anos nas ruas, era sempre conduzido alguns pontos acima da média de tráfego ao redor, como se fosse uma arrogante extensão da personalidade do feliz proprietário. Era catalisador de comentários e fomentador de novas lendas e patamares de desempenho. Hoje seus 165 cavalos podem parecer tão inofensivos quanto as letras da Sandy, mas não é bem assim, ele tinha carisma, personalidade e exigia um condutor fino e focado para extrair toda a força e velocidade disponível. O motorista tinha que lidar com as ranhetices de um motor apático em baixa, mas cruzando a meta da metade do conta-giros, a progressão suave, mas forte; era a senha para sorrir feliz com a sua montaria... “qual o caminho mais longo?”



Não tenho dúvidas que os atuais T-Jet da Fiat seja carrinhos muito mais práticos, mais espertos e sorridentes desde as rotações normais. Pequenos reatores de torque e potência; mas o Tempra Turbo tinha toda a herança do final dos anos 80, dos carros com pedigree, não tão fáceis de conduzir mas muito apaixonantes em suas características. Grandes, chamativos, as vezes até deselegantes... mas sempre marcantes. O Turbo da Fiat era o equivalente - em nossos pobres parâmetros nacionais - do 911 da Porsche, do série 8 da BMW e de mais tantos outros.

Sua estirpe era diferenciada no começo, depois perdeu-se pela sedução das quatro portas e visual mais comportado, sobreviveu brevemente e hoje parece condenado a rodar pelos subúrbios em péssimo estado. Mas existe uma luz no fim do túnel, como outros pequenos mitos automobilísticos nacionais, talvez algumas poucas unidades sejam preservadas como testemunho vivo de uma época de grandes transformações na indústria nacional.

Alguém duvida que Michael Schumacher ficaria mais contente em protagonizar um comercial com o Tempra Turbo ao invés do Linea T-Jet como foi feito na época deste?

Eu não duvido...

P.s: Muito do impacto do lançamento do Tempra, a versão inicial, é creditada a extensa campanha publicitária empreendida na época. Algo realmente de bom gosto e inovadora como era o próprio carro. Um dos responsáveis por isso é Paulo Levi, um competente publicitário que mantêm um blog que é refinamento e cultura em “estado bruto”. Vale sempre visitar – e aprender  - sobre carros e toda sua peculiar cultura acessando lá:  http://adverdriving.blogspot.com/